A força do acaso

BORBOREMA
9 min readFeb 6, 2021

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Camila repassava mentalmente todas as tarefas que deveria cumprir naquele primeiro de janeiro. Ler os jornais para não ficar de fora do que acontece no globo, sob pena máxima de ser taxada de alienada, veja bem, não dominar os tênues e múltiplos feixes que entremeiam a questão da Criméia era de altíssimo risco social, podendo abalar a já instável, como pensava Camila, relação com seus colegas de bar. Em seguida, a missão era encontrar onde assistir o filme que vencera o Louro de Ouro na premiação sueca, já que dificilmente o longa desembarcaria para os cinemas brasileiros, mas isso, é óbvio, não abre desculpa para ela fugir do longa, pois ele muito dificilmente passará despercebido das discussões mais apuradas sobre cinema que se encontra na internet, e ela, tem que saber o que falar, ponto final. Ou melhor, de exclamação!, porque pensar em estar por fora de tais pautas é de se causar palpitações, ai, ai… Depois de todas essas eventuras, enfim chega Ulisses em seu destino. Sim! Não?! Evidente que não, a produção literária contemporrânea com matizes revolucionárias calsava espasmos de emoção em Camila, quase tivera um treco ao descobrir as inovações gráficas de um capítulo composto apenas por pontos finais, fina e original obra de seu tempo inegavelmente superior aos demais. Esses pontos juntos significam a eterna reticência da vida e, em simultaneadade, a sempre eminência de um ponto final inesperado, o fim, o ponto, o pó, o nada, pronto-acabou…………………………..

O plano era chegar exausta no fim da tarde e, se ainda houvesse forças, deveria se lembrar de negociar com a diarista um descontinho no serviço, pois, vejam bem, a casa não é grande, leu assim: VENDE-SE 4 quartos, dois banheiros e um lavabo, quintal amplo com piscina aquecida e sauna, cozinha american way, sala de visitas e de TV. Ganhou quando conseguiu passar na faculdade depois do cursinho preparatório, e com aclamação! Orgulho da família, nosso geniozinho. Falando nisso, que droga, acabei lembrando Camila de que ela também precisava ligar para a secretaria da faculdade, passava em sua cabeça letra-a-letra: U-R-G-E-N-T-E-M-E-N-T-E, porque, por algum erro ou pura incompetência daquele povinho, os boletos mensais estavam indo para seu endereço, veja só, ao invés do da casa dos pais, o que obrigava ela toda vez ter que pegar o celular, apertar os números do telefone da mãe e: mãe, vê se você passa aqui mais tarde, viu!? Mais uma vez esse povo da faculdade mandou o boleto pra cá. Eu vou, eu vou falar para eles mudarem o endereço, mas isso nem deveria ser preciso. Eu sou ocupada demais, você sabe, e é muita falta de bom senso desse povo. Por isso que falo que o que mais tem é gente com a cabeça oca naquele lugar, tenho até cuidado.

Mas, eis que opera a lei do inesperado e.

Silêncio na platéia.

Rufem os tambores.

Em três, dois, um: a luz acaba.

Não pense você, simples leitor que provavelmente como eu sofre com o constante medo de ter a luz cortada porque esqueceu de pagar a conta ou por não ter saldo suficiente quando está no débito automático. Camila, graças ao sempre tão bom Deus nosso paizinho, não sofreu com isso e nem sequer, salvo algum erro de percurso muito inesperado, sofrerá. Acontecia que era um dezembro muito tempestuoso e por infelicidade do destino da nossa heroína um galho de uma árvore do condomínio caira bem em cima da fiação elétrica que, grave falta do condomínio, ainda não era subterrânea com na Europa, o que, num primeiro momento, escandalizou Camila e seus pais. Mas, já se viu, é a fala hipnotizante do corretor, as vantagens do condomínio, o salão de beleza para pets, etc, isso deixo para o corretor detalhar caso seja de interesse do leitor. Seu número, deixo no final do texto.

Mas a luz acabou.

Primeiro pegou um livro para ler, mas, não sei o que, uma coisa dentro dela, um desconforto na altura da garganta a impedia de tirar qualquer significado daquelas palavras. Mas ela persistiu, grande literata que era, não poderia largar o livro sem sequer passar por umas dez páginas. Só dez páginas, que são apenas cinco folhinhas. Fazia essas contas mentais. Sim, cinco folhinhas que ela poderia ler em menos de meia hora, sim! Vejamos, se for uma minuto para cada página, são apenas 10 minutos… Mas a escrita é rebuscada e, o tema, truncado. Jogamos um seguro tempo de três minutos por página, assim eu em meia hora, como já cogitara, mato as dez páginas. E quem sabe, no meio disso, eu passe um chá. Comprei aquele da marca britânica de frutas vermelhas que é divino, e fica tão fotogênico um livro ao lado de uma bela caneca de chá, pena que a bateria do celular morreu, senão poderia tirar uma bela foto. Uma pena não estar com minha instantânea nessa hora… Então ela entrou no quarto e deu de cara com uma barata. Barata, barata, barata… Como é? Mas bem agora você me dizia das bitucas de cigarro que jogava pela janela da cobertura do prédio. Esse livro é um mistério. Mas, ela está fazendo o quê no quarto da empregada? Para quê? Será que nessa casa tem um quartinho de empregada? E se eu fosse lá e a vida representasse a arte e então eu seria a protagonista e então seria interessante e, e… Quem saiba queiram me ler então! Isso, sim! Estupendo! Já visualizo a bela história de uma jovem que se confunde com a personagem do livro, não, melhor: reencarna. Se confunde nada, pois não é louca, além do que ela se entende muito bem. E veja bem, reencarna já traz todo um sentido religioso que transcende milênios e com certeza tocará o leitor da história fundo em seu interior; ou, para falar como na literatura: os seus refolhos internos, os seus mais secretos repolhos, nos seus mais retos intestinos, ratos internos, roto inferno. Chega! Onde parei? Essa história não avança, só fica na cabeça da personagem, que ódio! Como podem falar que gostam disso? E por que eu não estou gostando? Eu tenho que gostar! Ainda faltam nove páginas, quatro folhas frente e verso e o verso da próxima a que estou lendo… Se eu estivesse com o celular à mão poderia ver um vídeo explicando essa parte, desvendando os mistérios dessas palavras. Um detetive que aponderá um micro rastro de sangue no texto que indicará o assassinato do crime e então o livro abrir-se-á tal qual o universo diante de Deus e eu, Virgem Maria, contemplarei esta vista e tudo saberei. Onipresente e onipotente e onisciente. Portadora do mistério e da luz. É essa nossa jornada pelo conhecimento, torna-se luz, alcançar a abstração, é tão leve que a alma viaja livremente carregando o intelecto, ter um quê de Deus? E se eu cortasse caminho? Camila joga o livro longe com tanta força que o fio que conecta as páginas à lombada fica por um triz de repense-se. Queria eu fazer um pacto e conquistar a iluminação. Corpos celestes, cintilâncias divinas, suaves palavras, tranquilo viver… como é bela a vida na abstração dos Céus! Nesse momento, olhando pela janela, Camila deu-se conta de algo que até então lhe passara despercebido, engolfada por textos e análises mil, uma forma estranha no gramado. Será uma folha morta? Impossível, está mais para um pedra ou bicho… Ah ha! É claro, é um bicho morto. Camila resolveu ir lá para conseguir saber o que era e teve que reprimir um susto de nojo e repulsa quando divisou ser um rato, enorme, com pelos cinzentos falhos pela aquele couro tomado por póstulas de verme. O rabo pelado, escurecido em algumas partes e estranhamente rosado em outras, enojou especialmente Camila. Aqueles olhinhos pretos, robóticos, as patas ligeiramente curvadas, que nem um pássaro morto. Algo no estômago de Camila começou a revolver-se enquanto ela analisa que perto daquela criatura nojenta, mas ela não conseguia desviar, não dava mais, agora teria que, que viver aquilo. Reparando bem, na altura da barriga um pequeno movimento, quase imperceptível, fazendo o tecido deslocar ligeiramente, com certeza algum berne que não conseguiu aflorar e fugir daquele prédio em chamas. O fedor que emanava do rato feito feixes de luz, preciso e implacável, diretamente para as narinas. Era um cheiro de sangue podre misturado com lixo, com morte, com esgoto. Quem olhasse de fora não compreenderia porque Camila continuava ali, tão perto daquela bicho asqueroso. Mas é que ela vivenciava a decomposição. Sentia seu estômago ser corroído pela suco gástrico que passava de órgão em órgão tudo transformando em líquido amarelado, sentia seu sangue coagular e então entrar em decomposição em todo seu corpo. De sua boca um cheiro fúnebre emanava, atraindo primeiro moscas, depois ratos, baratas e por fim urubus, que faziam dela seu banquete especial. Vermes e insetos menores achegavam-se ao seu corpo frio e asqueroso e começavam a cavar a pele com suas patinhas, para depois entrar fundo naquele mundo interno em apocalipse e morrer nas luxúrias da carne e gozar uma gula eterna. Suas unhas continuavam a crescer assim como seus cabelos, e gases da putrefação faziam soar pela sua boca sons misteriosos. Os vermes reproduziam-se e anunciavam com alegria a chegada de mais crias naquela fartura de carnes. Era então uma deusa, mãe de uma biosfera que do barro de si mesma dava origem a vidas. Gabava-se e admirava-se daquele processo que dera origem.

Quase um milênio se passara e os vermes evoluíram para formas de vida complexa.

Mas de repente Camila foi tomada por um impulso,

Camila deu-se conta que estava extremamente e alucinadamente excitada, precisando gozar e liberar aquela energia profunda. Sua mente foi tomada por um enuviamento que a conduziu ao banheiro. Então ela só conseguia pensar no seu corpo e na fenda profunda entre suas pernas. Então tudo que existia no mundo era sua vagina e necessidade de gozar. No banheiro, fechou a cortina florida da janela e tirou a calça e sua calcinha. Olhou-se no espelho e apalpou forte sua própria bunda. Depois foi acariciando com as pontas dos dedos, primeiro contornando a virilha e depois a barriga e rumando para o peito, contornando os mamilos e sentindo arrepios por todo o corpo. Ela contorcia-se nas próprias mãos, puxava seu próprio cabelo e sorria de satisfação ante sua potência. Encheu a banheira de água agradável ao toque, jogou sais de banho e começou a masturbar-se no banho. Corria os dedos em círculos, brincava com duas profundidades e texturas, enebriava-se com o perfume da água, era abraçada por aquela água agradável. Sentia-se num útero de orgias e prazeres infinitos. Tocava-se em movimentos ritmados e dedilhava uma canção celestial, música cósmica, ligou-se à Vênus no plano astral e corporal: era uma deusa de si mesmo. Então, então, sentia que, que ia atingir o clímax, que. que ia… ia gozar:

Sim!

Na cabeça de Camila então iluminou-se um pensamento que estava sempre, sempre lhe comunicando. Foi tomada por um enevoamento que a conduziu ao banheiro e então agia quase que maquinalmente. No caminho pegou um banquinho e deixou ao lado da cabine do chuveiro. Sua verdade sempre foi aquela, no fundo sempre soube. A vida eternamente seria-lhe insuportável e um constante correr atrás de uma ideia de si mesmo que ela não conseguia alcançar. Ideia essa que ela nutria para fazer parte de um grupo de pessoas que sequer ela podia contar. Será que sabem meu nome? Que nada, esse tempo todo foi só para se aproveitar do meu dinheiro, das minhas rodadas de bebida, da minha generosidade! Que vão para a puta que pariu. Eu consigo ver bem suas expressões desinteressadas enquanto eu tentava falar o que pensava e, pelo menos uma vez que seja, ser levada a sério. Como foi boba! Eles olhando para o celular, mexendo nos canudos do copo. E depois era só o “Camilinha para cá, Camilinha para lá, vamos festejar! Libera outra rodada pra gente.” E a boba lá, fazendo tudo, fingindo rir de suas piadas ruins, fingindo entender aquela conversa sem pé nem cabeça, encarando um personagem de mim mesma em que eu aceitava ser aproveitada em troca de companhias humanas. Desgraçados! E então ela só conseguia pensar em como perdera tempo com aquele povo e como se sentia vazia. Com um misto de felicidade e tristeza, sentia-se iluminada; em êxtase profunda, explodia em lágrimas e risadas. Nunca estivera tão dentro de si. Correu os dedos na mangueira do chuveiro e fez um círculo. Ria-se, rompia em lágrimas, sentia o corpo arrepiar em sensações prazerosas enquanto passava a cabecinha no círculo formado. Puxou o banquinho com os dedinhos brancos do pé e em seguida ergue-se nele. Então parou de chorar e abriu um enorme sorriso: era uma deusa de si mesmo. Então, então, sentia que, que ia atingir o clímax, que. que ia… ia morrer:

Sim!

Quando você tira tudo aquilo que cria a sua autoimagem, o que sobra é a carne crua exposta a olhos nus para qualquer um e sobretudo você mesmo ver. Olhei no espelho e gritei, não me reconhecia naquela forma tenebrosa. Dear thea…

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